6.7.22

parte onze - mereça o manto

Não foi a primeira vez que vi um torcedor de poucos recursos vestindo um manto antigo e oficial do Grêmio. Foi num sábado que consegui uma troca que até hoje me recordo. A data em si, não sei dizer. Mas tive que recorrer a velhos retratos para ter uma ideia do tanto de tempo que eu o fiz. No mínimo, 12 anos.

A pé, a caminho do trabalho, eu vi de longe um guri. Talvez pouco mais novo do que eu, quiçá da mesma idade. Por ser cedo da manhã, a temperatura não era das mais amenas para o guri estar vestido apenas de uma surrada e bastante encardida camiseta do Grêmio, uma bermuda e um chinelo de dedo bastante precário. Quanto a camiseta, era rara por sinal. Só que ele estava muito distante, e logo sumiu de vista, se perdendo na "imensidão" do centro de Santo Ângelo. 

Logo quando cheguei no serviço, compartilhei com os colegas sobre o que tinha visto. E disse, sem hesitar, que se eu visse novamente o guri aquele, lhe faria uma proposta pela velha camiseta, pouco me importando com o estado dela em si. Porém, o piá não reapareceu de imediato, e logo pensei que nunca mais o veria. E tratei de esquecer do assunto. 

Na época, eu era balconista numa loja de material elétrico e hidráulico. Já devo ter dito isso em algum momento, enfim. O movimento era incessante. Um entra e sai de gente. E na grande maioria das vezes, o sábado era o dia dos problemas. E quanto mais se aproximava do meio-dia, mais coisa aparecia. Parecia deboche. Pois, durante a semana sobrava tanto tempo que até seriado assistíamos no final das tardes... 

Lá pela uma altura da manhã, faltando meia hora para o meio-dia, quem resolveu aparecer na rua, justamente, quando a loja estava cheia de gente? O piá da camiseta! Bá. Se dizer o que fiz, vai parecer mentira. Então melhor passar esta parte. 

Não por menos, quando me viram eu já estava conversando com o guri. Feito um maníaco, eu o parei. Imediatamente eu o indaguei sobre camiseta, que de perto, por Deus... estava péssima. Mas eu entendi perfeitamente os motivos daquela precariedade, e em nenhum momento julguei o rapaz. Lhe perguntei também se ele sabia, pelo menos, o ano daquela camiseta. Ele me disse: não sei, cara. Só sei que é velha. Ganhei numa dessas campanhas de agasalho... 

Eu precisei pensar rápido. O cara naquela altura deveria estar desconfiando de alguma coisa, pois disse a ele que já tinha lhe visto mais cedo. Disse a ele o ano da camiseta, contei-lhe que eu a muito tempo a procurava e já emendei uma proposta audaciosa. Quis mexer com o brio do rapaz. Mas antes é claro, quis saber se ele realmente tinha noção do que vestia. Disse ele que não ligava muito, que era apenas mais um gremista no mundo. Humildade. Notoriamente, eu percebi que ele não tinha condições de ter uma camiseta nova. E foi essa a proposta que eu lhe fiz. Naquele ano, por ironia, o Grêmio e a Puma haviam lançado uma réplica quase que perfeita da camiseta de 1995. Contei ao guri sobre isso. Ofereci a ele. Detalhe: o levei até a extinta Mundo dos Campeões. Ficava ali, no calçadão. Vendiam material esportivo da dupla. Mas disse a ele que se quisesse qualquer outra camiseta do Grêmio, poderia escolher. Ainda bem que o cartão de crédito tinha limite... mesmo assim, o rapaz foi tão humilde que não quis outra se não aquela réplica de 95, que por sinal era mais em conta que as demais. E ali mesmo, dentro da loja, ele experimentou a camiseta nova e não mais a tirou. E me entregou a sua velha, surrada camiseta "branca" do Grêmio do ano de 1994. Confesso que não sei dizer quem ficou mais feliz. Talvez ele, pois a camiseta nova pelo menos estava cheirosa...

Gentilmente, o vendedor da loja e talvez um tanto perplexo, me cedeu uma sacolinha para que eu pudesse por a camiseta velha dentro. Quando retornei pro meu serviço, já quase de meio-dia, os colegas ainda me zoaram a respeito do escambo. Ainda me disseram: duvido, tirar o fedor desta camiseta e a sua sujeira... e eu dei risada.

Penso, às vezes, que sou retardado. Ninguém entende esses briques que faço, ou que já fiz. Mas outras vezes penso que devemos merecer o manto sagrado. Seja ele qual for. Novo, velho... original ou não. Acredito até hoje que aquele guri merecia e muito uma camiseta nova. Eu poderia ter dado a ele dinheiro, por exemplo. Mas ele não quis. Ademais, ele pouco se importava se a camiseta que usava era velha, feia ou encardida e um tanto mal cheirosa. Usava porque era gremista. E como dizia o Sant'Ana: "ser gremista é o sonho delirante de não conseguir na vida ser uma outra coisa”. Para aquele guri, ser gremista já lhe bastava. Depois daquilo, nunca mais o vi. 

Quanto a mim, eu acreditei que poderia recuperar aquela camiseta. O retrato está aí, em dois tempos. E além desta história, esta camiseta já tem muitas outras. Foi o meu talismã na campanha em 2016. Confesso, inclusive, que a usei em todos os jogos e só a lavei depois da festa do penta campeonato. Superstições, cada um tem a sua... E veja só a camiseta que o amigo Gláucio usava naquela noite... a réplica de 95. Acredito que naquela mesma noite aquele guri estivesse por ali, festejando feliz da vida, do mesmo modo que nós.